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Se qualquer um de nós recebe como herança o que restou de um armazém familiar, encerrado em porão por mais de dez anos, toma como primeira providência pagar a alguém para jogar fora os objetos inservíveis destinados aos fazeres do cotidiano: talheres, caçarolas, escovas, anil. Caixas e caixas de anil. Qualquer um de nós faria isso, até eu, atenta para essas coisas raras que recrio em textos, fotografia, aulas. Selma Parreira não é qualquer pessoa, é artista plástica afinada com os ensejos do tempo.

Esses tempos de sabões miraculosos, amaciantes desejáveis. Lavar roupa é um ato erótico, o gozo como projeto pedagógico nos comerciais de televisão. Selma rejeita tanta contemporaneidade, mergulha na existência para tirar dela o barro que satura as águas do rio, põe-se a lavá-la com as centenas de pedras de anil encontradas no porão, retomando dias da infância, em que brincava com o resto que a lavadeira deixou. A pedra se dissolvia, saturava a mão de azuis possíveis, bordavam-se no imaginário da menina desejos  do que não conhecia, massais (tão negros que são azuis), tuaregues, uma deusa da Groenlândia.

Anil dura o tempo de alvejar a roupa e virar mandala no fundo da bacia, predizer identidades e futuros. Tudo passa sobre a terra, os sinais com que se põe de pé a poética dos objetos, então! Quem garante pedra que se desmancha, que tinge água e roupa com o desmanchar? Tempo de Anil para lavadeiras, tempo igualmente de anel para lavadeiras.

Em Luzalina, a artista atordoa o tempo e as regras rígidas, faz da mão lavadeira a mão de modelo para joias de azul. Mergulha na corrente do tempo, resgata do afogamento as lavadeiras que tingiram, bandeiras tremulantes, as margens do rio Vermelho, à beira de Goiás Velho.  Desde muito lavaram roupa na água fria a correr em meio à vida, até a cidade expulsá-las como memória indesejável.

Indesejáveis as manchas no fundo das roupas, borras camufladas para a personagem sair bem na fita (como as biografias, toda sujeira precisa ser autorizada). Rasuradas na paisagem antes mesmo que novos hábitos o determinassem, desautorizadas, as lavadeiras lamentam a roupa que rodou, descendo correnteza abaixo. O tempo que rodou.

Selma tomou as caixas de anil da herança, foi intervir na cidade, lembrar os lençóis esquecidos no rio Vermelho.  Ao lado da casa de Cora Coralina, os enormes lençóis, anilados, entregam ao vento as gratidões passadas. A história passada.

Posso entrever Miguelina humilhada, se desculpando com Sá Eduarda pelo lençol de núpcias que rodou rio abaixo, preferindo estriar-se em correnteza e pedras a ser pano esticado para o morno exercício de um sexo traído. Vai ser despedida, a Miguelina. Vai rodar na boca de colegas e patroas a fama de relaxada e imprestável. A seu favor, as frases murmuradas, que Eduarda ignora:

– Não tive como dizer não, Sá Eduarda. O rio pediu.


* Foto de Vicente Sampaio.

Para quem gosta de anil e roupa lavada, visite http://lencoisesquecidosnoriovermelho.blogspot.com.br/



Nilma Lacerda

Nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. Autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio, Estrela de rabo e mais histórias, Iberê Camargo: um homem valente, é também tradutora e escreve ensaios e artigos científicos. Recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio, o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil, além das distinções White Ravens, da Biblioteca Internacional de Munich para a Juventude  e Lista de Honra do International Books for Young People. Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, mantém na Revista Pessoa a Coluna Ladrilhos, com crônicas de talhe variado, em perspectiva lusófona.




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