As histórias cumulativas têm lugar cativo na literatura oral. A narrativa avança com a repetição da frase anterior, à qual são acrescidos elementos destinados a marcar a sequência dos fatos e a sublinhar a distância entre o nada de antes e a tripa de palavras que promete ordem ao caos.
Agarrados a essa ordem vão narrador e personagens de O teu rosto será o último, de João Ricardo Pedro. Augusto, António, Duarte Mendes. Avô, filho, neto na faina de viver, com suas escolhas, desistências, buscas. Três gerações, cartas, casos, rostos a compor quebra-cabeças como os de toda existência, em peças soltas que tanto poderiam armar-se aqui como ali, não fossem os detalhes das bordas. No restrito planisfério, no recorte histórico de alguns fatos que tocam a história de Portugal, as vidas são meadas de linhas trançadas em torno de saber-se a si próprio, saber o si dentro do outro.
A reprodução de um fragmento da tela de Bruegel, uma mulher mutilada de lenço azul na cabeça, as muletas a sustentar o corpo em movimento, permite a alguns personagens tocar o centro da vida, alcançar a beatitude. Retrato, autorretrato, a pintura situa-se na interseção entre o original da arte, sua reprodução e o real: “...o verdadeiro rosto da mulher era muito diferente do verdadeiro rosto da mulher do quadro de Bruegel. Mas o rosto do quadro da mulher era admiravelmente parecido com os dois.” Pode-se nesta passagem, invocar a célebre frase de Alain Badiou, “A arte não é o reflexo do real, mas o real desse reflexo.”?
Tanto trabalho me custou compreender que o real é o corpo do alfinete enterrado na carne e do qual a cabeça é tão-somente um sinal. Inapreensível por natureza, o real, pode no máximo ser representado, e sempre de forma deficitária. O autor distribui suas perguntas: a arte responde às demandas do humano? Vive cada um de nós no outro? Em parte ou totalidade? As coisas estão sempre dentro de outras coisas? O quadro na parede da casa de António, descrito logo após a morte da mulher, retomado uma segunda vez após a morte do próprio António, remete a uma cena capital da obra-prima de Sándor Márai, As Brasas. Situação que nada afirma, mas tal qual o silêncio de Capitu em Dom Casmurro serve de adubo à desconfiança, dá corpo a uma suposição sobre a morte de Celestino, assassinado no dia 25 de abril de 1974.
Para encontrar a explicação do fato, Duarte propõe-se refazer o périplo de outrem, e exemplifica sua necessidade com a história de Joseph Castorp, que decepou a própria mão, ao saber que tinha passado a vida a tocar para os nazistas. “– Vamos para dentro. Está a ficar frio.” – diz Luísa ao companheiro, encerrando a narrativa. A frase confere o sentido prático em que a vida deve também ser considerada.
A mulher da tela de Bruegel atravessa a praça e espia o eterno combate entre Carnaval e Quaresma, entre o corpo e o que o transcende. Talvez tenha apenas um parco entendimento de toda aquela azáfama, talvez seja plena a sua compreensão, doada a quem por ela se interessar. Atravessar a praça como aquela mulher – oferta doída e generosa do romance de João Ricardo Pedro.
* João Ricardo Pedro. O teu rosto será o último. Leya: Alfragide, 2012. Citação à p. 158.