Confira com exclusividade um capítulo do livro Turismo para cegos, de Tércia Montenegro, que sai pela Companhia das Letras. Tércia Montenegro é autora de O tempo em estado sólido, finalista do Jabuti e do Portugal Telecom em 2013. Seu romance Turismo para cegos foi contemplado pela Petrobras Cultural e vários de seus contos integram antologias nacionais e estrangeiras. Graduada em Letras, com mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Linguística, é professora adjunta da Universidade Federal do Ceará.
Ficar cega significa entrar num outro tipo de consciência. A análise do mundo passa por outras vias: compara-se de uma nova maneira, para entender as coisas. Já nos primeiros exercícios, senti que perdia minha exterioridade – mas em compensação ganhei as vertigens. Era compreensível que quisesse rodar, rodar, os braços abertos como um dervixe, um lenço preto sobre o rosto – eu era a deusa da Justiça, mas me faltavam a espada e a balança. Na minúscula sala do meu apartamento, eu me concentrava num ponto e girava, tomando cuidado para não bater nas paredes. E depois fechava os olhos em outros ambientes, fazia descobertas.
A grama alta é como um tapete de retalhos.
Minhas extremidades – unhas, dedos, nariz, queixo – são extensões longínquas e inalcançáveis.
Há uma película grudenta em toda superfície metálica.
O silêncio não existe. Os sons vibram em minha cabeça, se eu deixar.
Ganhei a pedra, o vidro, a casca: suas texturas únicas, inaugurais.
Descobri uma resistência no ar, uma densidade sutilíssima, como se tudo vivesse sempre coberto. Mesmo nua, o ar me reveste numa segunda pele.
Conheci os objetos indeterminados, que para os cegos permanecem um mistério habitual.
Capturei a ideia do viscoso; não há diferença entre orvalho e suor.
Os contornos se desprendem no instante em que os domino.
Consigo conduzir os meus delírios: rodar, rodar.
A experiência é a única medida. O horizonte desmorona, quando não estou lá para contemplá-lo.