Outro
dia uma amiga comentava sobre um programa que assistira na televisão a
respeito da capacidade de adaptação da visão em ambientes com excesso ou
falta de luz. Dicas que envolviam estratégias de deslocamento no claro
ou no escuro eram dadas a partir de uma série de situações concretas.
Entre as descrições que ela fez uma em especial passou a me perseguir:
um cego que andava de bicicleta. Ao pedalar, o inusitado ciclista
estalava a lÃngua e, por meio do retorno das ondas sonoras aos seus
ouvidos, ele era capaz de desviar de barreiras e dimensionar o espaço a
ser atravessado, configurando o mundo a sua volta por ressonância.
Enquanto
eu a ouvia, traçava os rumos dos estalidos saÃdos da boca do cego, suas
idas, vindas e dissipações quando diante do vazio. Vi calçadas, guias,
buracos, muros e pilastras, tudo convertido em cordas e metais vibrantes
que, obviamente, ele próprio nunca viu e não veria nem se enxergasse,
porque o que é veiculado por palavras, por mais objetiva que seja a
descrição, sempre toma algum atalho no território particular de quem as
recebe.
O que eu via era formado pela conjugação entre o
já visto e o imaginado a partir daquelas sugestões que são cada
vocábulo quando se une a um outro e outro, formando caminho. Aquele som
da lÃngua do cego ecoou longe para mim, convertido em bolinha esbarrando
nas superfÃcies do fliperama do boteco da rua da infância. Não estava
em jogo apenas a ligação entre palavras e espaços concretos, mas de
espaços que, construÃdo por palavras na voz amiga, longe dos olhos,
convocavam uma memória visual de outros lugares e de outras vozes que
hoje só posso ouvir via lembrança.
Não é incomum que
experiências anteriores e mesmo simultâneas sobreponham-se durante a
leitura de forma involuntária, inclusive aquelas experiências que nunca
foram nossas senão pela apreensão do outro que lemos em nós,
revelando-nos em lugares onde jamais imaginarÃamos pisar. Um amigo,
lendo a Montanha mágica, de Thomas Mann, em estadia em um
hotel em Visconde de Mauá, visitava o próprio sanatório onde se passa o
romance. Na hora de sair de seu quarto e descer para o café da manhã,
oscilava entre ansiar e temer reconhecer nos hóspedes traços dos
personagens. Outro conhecido, para ficar em mais uma localidade
percorrida pelo mesmo autor, foi capaz de abstrair as multidões de
turistas que vagam por Veneza para fitar Tadzio, ou melhor, o Tadzio que
ele reconheceu em alguém a partir da leitura que fez da perfeição da
beleza do jovem perseguida por Aschenbach em Morte em Veneza.
Os
papéis do lugar variam muito de narrativa para narrativa. Às vezes um
lugar é extensão dos estados de alma de uma personagem, outras, projeção
de deslocamentos do tempo. Os lugares numa dada geografia ou numa
página já amarelada tampouco são fixos no intervalo da leitura Ã
releitura.
Nas memórias de Pedro Nava (1903-1984),
editadas atualmente pela Companhia das Letras, a reconstituição dos
espaços em que se deu sua formação de escritor é decisiva. Escritos onde
espaço e memória, sobretudo a visual, neste caso, não se dissociam. Não
à toa os nomes de cada capÃtulo de Baú de ossos, Balão cativo e Chão de ferro
remetem aos lugares primordiais dos acontecimentos narrados sobre seus
antepassados, sua infância e adolescência: “Caminho Novo”, Paraibuna”,
“Morro do imperador”, “Serra do Curral”, “Engenho Velho” etc.
Beira-mar,
que termina quando Nava já tem 25 anos de idade, ao contrário do que o
tÃtulo sugere, tem seus episódios passados todos na não litorânea Belo
Horizonte. Há aà também uma despedida do universo familiar e o anseio de
partida rumo ao Rio de Janeiro (onde já vivera quando menino com a
famÃlia em um sobrado, ocupado por oito adultos e quatro crianças, no
bairro do Rio Comprido). Memória onde passado e anseio de futuro dialogam de um lugar a outro. (Talvez um revisor implique com o advérbio “onde” aqui? Aqui?)
“Desde que há as antigas técnicas mnemônicas [...] existe uma ligação inseparável entre memória espaço. O cerne da ars memorativa consiste de imagines, a codificação de conteúdos da memória em fórmulas imagéticas impactantes, e loci,
a atribuição dessas imagens a locais especÃficos de um espaço
estruturado. A partir dessa qualidade topológica se está a apenas um
passo de considerar complexos arquitetônicos como corporificações da
memória”, pontua Aleida Assmann em Espaços da recordação (Ed. Unicamp, 2011, trad. de Paulo Soethe).
No quase homônimo, Espaços da memória
(Edusp, 1998), o crÃtico e professor da USP Joaquim Alves Aguiar
analisa as memórias de Pedro Nava a partir do mapeamento da casa, da
escola, do trabalho e da rua como espaços principais de certas histórias
da formação burguesa, mas chama atenção para o fato de que os trânsitos
constantes na vida do autor desde a meninice é que teriam forjado seu
modo de ser ou, em outras palavras, seu modo de lançar o olhar e fazer
ver esses espaços primordiais. E o próprio Aguiar arquiteta um espaço no
campo das artes visuais para abrigar o dizer desse narrador de
movimentos que paradoxalmente busca neles alguma fixação:
“Trata-se
de uma espécie de viajante que descreve com minúcias os lugares por
onde andou e a multidão de pessoas com quem conviveu ou simplesmente
cruzou. Nesse sentido a obra de Nava pode ser vista como se fosse uma
imensa galeria, com disposição labirÃntica, as paredes tomadas por uma
sequência infindável de retratos. Somente um grande fisionomista,
treinado para fixar os ambientes em que viveu e as figuras que neles se
moviam, poderia ter pintado os quadros da volumosa exposição que
compreendem as Memórias.”
Pedro Nava parece
dar a ver por meio de seus escritos aquilo que já não está diante dele
como estaria um modelo diante do desenhista (atividade que, aliás, ele
também exerceu e são inúmeras as referências a telas e pintores em sua
obra), afinal, trata-se de rememoração. A narrativa do lembrar é também o
dizer de ações sobre um espaço e de da duração desses gestos no
tempo-móvel.
Quando escrevia O olho e o espÃrito,
seu último texto concluÃdo entre julho e agosto de 1960, Maurice
Merleau-Ponty (1908-1961) estava hospedado na casa de um pintor no
Tholonet, em Provence, diante da paisagem marcada pelo olho de Cézanne,
que, como nota Giacometti, busco a profundidade por toda vida. Nessa
meditação sobre a pintura e sob a marca desse olhar, o filósofo francês
se convence da impossibilidade do compartilhamento da visão e do
visÃvel. Caberia à filosofia acolher o enigma que persegue o pintor e
unir conhecimento e criação no espaço da obra, fazendo ver com palavras,
(grifo de Claude Lefort, que aqui parafraseio, no prefácio acrescentado
à edição francesa do livro em 1985 e incluÃdo na edição brasileira
publicada pela Cosac Naify, 2004, trad. de Paulo Neves e Maria Ermantina
G. G. Pereira).
Ainda neste texto, Merleau-Ponty chama
a atenção para o fato de a pintura atribuir-se um movimento sem
deslocamento, que me lança à imagem do leitor sentado numa poltrona ou
recostado na cabeceira da cama (não vou considerar que outro dia vi uma
mulher que lia enquanto caminhava na praia). No caso da pintura isso se
dá por vibração ou irradiação, ele explica, e ao explicar remete a outra
imagem em movimento na verdade inexistente:
“A pintura
é uma arte do espaço, ela se faz sobre a tela ou o papel, e não tem o
recurso de fabricar móbiles. Mas a tela imóvel poderia sugerir uma
mudança de lugar assim como o rastro da estrela cadente em minha retina
sugere uma transição, um mover que ela não contém.”
Quando
lemos temos algo daquele cego que anda de bicicleta, pensei. Ainda que
se possa parecer por vezes que estamos apenas na garupa de olhos bem
abertos. Percorremos lugares nunca vistos, somos impulsionados a outros
meios pelo já conhecido. As palavras estalam na lÃngua antigos sabores
recobertos de novidade. Algo estala em mim que rebate no que leio, e
desse encontro entre o palpável incorporado e o que pede meu primeiro
toque algo retorna me deslocando. Já não estou onde estava. Por vezes,
já não sou o que era. Um mundo preexistente se reconfigura no contato
com determinada obra.
Mas não é tão conclusivo esse
pensamento quanto parece no parágrafo anterior. Algo não fecha nessa
“visão” das coisas, por assim dizer. Coloco a questão-tÃtulo do livro
organizado e escrito pela Noemi Jaffe, O que os cegos estão sonhando?,
publicado pela editora 34, com diário de sua mãe Lili Jaffe. Obra que
traz ainda o presente (em todos os sentidos da palavra) que é a
perspectiva poética da Leda Cartum, pura geração, para não dizer
“terceira”, porque incalculável as camadas de tempo ali conjugadas entre
essas mulheres. “O que os cegos estão sonhando?”, retorna para mim como
recalcada pergunta.
Volto ao cego que andava de bicicleta e giro em cÃrculos em A conversa infinita: a palavra plural,
de Maurice Blanchot (Escuta, 2001, trad. de Aurélio Guerra Neto),
empaco no capÃtulo “Falar, não é ver”, quando tratam as duas vozes que
ali debatem sobre o tremor constante que não deixa as palavras quietas
num lugar mesmo sendo imóveis, de uma “imobilidade movediça do que tudo
que se move”:
“__ Mas, a palavra tem seu próprio caminho; ela cria um percurso; nós não somos desviados de seu âmago, no máximo em seu uso.
__
Mais, talvez: como se estivéssemos afastados do visÃvel sem termos
retornado ao invisÃvel. Não sei se o que estou a dizer diz algo. É
simples no entanto. Falar não é ver. Falar libera o
pensamento desta exigência ótica que, na tradição ocidental, submete a
milênios nosso contato com as coisas e convida-nos a pensar com a
garantia da luz ou sob a ameaça da ausência de luz. Deixo-vos recensear
todas as palavras pelas quais é sugerido que de fato é preciso pensar
segundo a medida do olho.”
A discussão segue, eu paro um instante.
Ao
ler o trecho acima pela primeira vez, grifado anos antes com caneta no
exemplar de um outro leitor, apaguei as luzes e fiquei no escuro ouvindo
os estalos da lÃngua do cego, o que sou, em meio a tantas imagens e
lembranças, tomando um baita capote na ladeira do bairro onde cresci ao
soltar as mãos do guidão da bicicleta... O aro girando o mundo quando
visto do asfalto. E mais nada. Um pouco de silêncio. Emudeci.
P.S.:
Para minha amiga Gheu Sousa Teixeira, contadora de histórias, fazedora
de quadros com palavras, menina que não deixa parar a mulher, que sonha
ter uma moto.