Domingo, 10 de abril de 2016
Passei a manhã e o restante da noite dedicada ao artigo para o livro sobre o sertão. Fazia muito tempo que eu não escrevia um texto deste tipo à mão. À mão só os diários, as anotações esparsas de leituras e aulas, marginálias. Duas semanas sem computador = caos. Na quinta, antes de eu ir para Unicamp, tinha chegado aqui em casa o livro do Glauber e ainda não tinha olhado direito. DifÃcil largar, mas apesar do “quando escurece na terra do sol” do subtÃtulo, por conta da breve comparação com o filme, o foco ainda é “Graciliano e os Lampiões”. Ontem o Márcio convidou o pessoal para assistir ao filme da Miriam Chnaiderman sobre a clÃnica do testemunho. Quis ir, mas não pude. Marcos me mata se eu atrasar mais a entrega do artigo. Mas hoje era domingo (era, porque logo deixará de ser a esta hora da noite, nesse tempo de fronteiras entre um dia e outro que se anota). Hoje tinha os 327 cadernos no “É tudo verdade”. E Marcos poderia esperar só mais um tantinho. Vai saber se o filme vai voltar para São Paulo. Não resisti. Fui lá ver.
Ricardo Piglia tem se tornado um tipo de obsessão, acho... Quantas menções a ele já devo ter acumulado por aà e aqui? Que número eu chutaria? Parece que os 327 não correspondem a uma quantidade de cadernos. Vinte mil dias? Li em algum lugar que foi uma espécie de “precisão de uma invenção”, uma conta feita de olho diante das caixas de papelão que seguiram em 2011 de Princenton, onde Piglia lecionou por quinze anos, para Buenos Aires, para onde retornou.
Fiquei pensando no corte de qualquer noção de enraizamento que é o deslocamento entre um lugar e outro, e como a mudança não apenas disparou a releitura dos diários, no caso de Piglia, como foi uma outra mudança o que o levou ao hábito da escrita de seus dias. Piglia afirma que, desde aquela tarde, nunca mais teria se preocupado com o lugar onde mora. Assim, no espaço mais Ãntimo está o público, não há a noção de casa como lugar de segredo, tudo parece nos dizer respeito nesta soleira. A tarde a que ele se refere como temporalidade primordial se deu em 1957, quando deixaram Adrogé, na provÃncia de Buenos Aires, rumo a Mar del Plata. Seu pai, que era peronista, decidiu se mudar por questões polÃticas. Piglia tinha dezesseis anos e a experiência foi de exÃlio.
A queda de Perón em 1955 e seu retorno em 1973 surgem na tela via escritos de Piglia e imagens de arquivo. Restos não editados de reportagens, vÃdeos domésticos, mas não da famÃlia de Piglia. Um parente com uma câmera na mão é o tio de qualquer um em qualquer parte, concluo. O escritor ao reler suas anotações, recorda que no dia em que se soube da morte de Che (1967) chovia... E a chuva que cai é para cada um uma chuva diferente, aquela chuva que caÃa quando... A ditadura nos anos 70, a luta armada, a redemocratização, história de todos que afeta a cada um.
Uma guerrilheira procurada por militares ficou escondida na casa de Piglia por um curto espaço de tempo. Morta em combate dias depois, era lembrada por um lenço esquecido. Nunca souberam como se chamava. Estavam ali suas iniciais? Já não me lembro o que ele disse com precisão. Ficou aquele lenço como pequena bandeira, hasteada. Bela imagem, tão clara, de um tempo sombrio.
Poderia dizer que o documentário de Andrés Di Tella, leitura das releituras dos diários do escritor, como ele diz, narrativa daquelas narrativas acumuladas em cadernos de diferentes tipos que correspondem a quase 60 anos de tinta sobre papel, percorreu meio século daquela vida única e da história da Argentina. Mas seria uma contradição em termos piglianos, por assim dizer, e Di Tella foi pigliano do começo ao fim dos 76 minutos que para mim ainda duram. A noção de unidade indissolúvel quando se trata da narração de uma vida não existe em Piglia. “A literatura é o lugar onde sempre o outro fala”, ouço seu acento enquanto faço esta tradução livre, assim de memória, essa lÃngua do outro impõem sempre algo a ser decifrado como o que não compreendo em mim. “Por supuesto, no hay nada más ridÃculo que la pretensión de registrar la propia vida”, diz Piglia, mas convencido de que se não tivesse começado a escrever naquela tarde da mudança para Mar del Plata, jamais teria escrito outra coisa.
Durante a produção do documentário, Piglia foi diagnosticado com uma doença degenerativa. De imprevistos, fragmentos, esquecimentos e lembranças involuntárias são feitas todas as leituras. “No pudo escribir”, a câmera foca a caligrafia do escritor. A página é virada e a tela se enche de linhas em branco. Os cadernos de Piglia são escolhidos para serem lidos ao acaso, sem ordem cronológica ou temática. Saltos que amortecem quedas já conhecidas, por isso dolorosas de lidar mais uma vez.
O tempo recuperado de Piglia logo busca algo que parecia perdido na minha própria noção de vivido. Primeiro um pensamento mais objetivo me ocorre, atento à ordem do dia: “o tempo do enunciado e o da enunciação, a temporalidade envolvida é ainda mais complexa em 327 cadernos do que o que tento investigar nos escritos memorialÃsticos da infância de Graciliano. Como alguém se torna um escritor? A pergunta é a mesma nos dois casos. Escritos num presente X, os diários são relidos em Y, leitura que é filmada”, penso comigo. Depois uma imagem mais remota surge sem pedir licença: enquanto assisto ao filme, me pego fuçando o diário alheio e confessando a F. o ato condenável, tamanha a culpa de guardar aquele segredo. As palavras guardadas do outro em mim. Nenhuma revelação bombástica além de um cotidiano de moço angustiado com a insônia. Bebedeiras para aplacar a realidade. Esboços de quadros. Um quebra-cabeça que eu mesma ajudaria a pintar (literalmente). Meu nome aqui e ali... Nem chegamos a brigar por causa daquilo. Mas foi muito forte o que previ do que li. E estou, e não estou, de volta à poltrona do cinema neste domingo.
Em meio à s páginas, é encontrada a foto do menino sorridente . “Um jovem com um rosto feliz, repara. O menino não sabe o que lhe espera”, comenta Piglia, cheio de humor. Naquela tarde, decifrando a letra do namorado, a moça também não sabe. Não há nada mais ridÃculo do que tentar registrar a própria vida? As páginas ridÃculas dedicadas à s dores de amor, certamente... piores até que as cartas de amor, que sabemos bem, são todas... ridÃculas.
O que é escrito em diário não é para ser lido? Piglia queria rever os diários, mas não tinha certeza ainda se gostaria de publicá-los, mas desconfia do sujeito que diz que não quer que seus diários sejam lidos e não os queima. Na Argentina, a estreia do filme foi praticamente simultânea ao lançamento de Los diários de Emilio Renzi: anos de formação [1957-1967], no fim de 2015. Emilio Renzi (Emilio, segundo nome de Piglia, e Renzi, seu segundo sobrenome), alter ego do escritor em Respiração artificial e Alvo noturno... Essa atribuição da própria vida a um personagem é a máxima pigliana a meu ver. E me encanta. PossÃvel contorno de uma poética que escapa, porque feita para escapar de verdades. O sentido de autobiografia como colagem de outras. Não vejo a hora de poder comprar o livro. É preciso juntar. Incluir na lista. Eu tinha uma lista de quinquilharias que queria comprar no bazar da rua. “Mãe, aquele meu diário de menina que tinha uma chave pequena. Você que me deu ou eu comprei?” Piglia listava boxeadores e o sentido da vida. Seus diários são também seu laboratório de escritor, ferramentas para os ensaios e romances. Diários para serem lidos e relidos por ele e agora por seus leitores. Serão ao todo três volumes com quase mil páginas. Lerei, lerei.
E os diários de F.? Por que fui ler? E já nem me refiro à s poucas páginas espiadas e confessadas. Anos depois do término do namoro, numa terça-feira que me lembro como se fosse hoje, meu telefone toca. F. pisca no celular. Atendo, não era ele, mas o irmão comunicando seu suicÃdio. Na carta que deixou, apenas senhas de banco. Senhas. Não aguentava mais a vida. O que poderia ser decifrado já naqueles escritos, no que se inscrevia das coisas que dizia e principalmente nas que silenciava? “Estou gasto de palavras...”, escreveu no e-mail que preferi não responder e foi nosso suposto fim. Mas não soube dizer não quando a mãe dele me pediu ajuda para lidar com os livros dele. Ela queria se desfazer. Tudo muito familiar dentro de um apartamento novo no qual eu nunca tinha entrado. Não saberia dizer não para uma mãe que enfrentava tanta dor, até que... Passados alguns meses da morte de F., ela me escreve para eu avaliar se os preços para a edição dos diários de F. estavam dentro do que eu conhecia do mercado editorial. Ela ia publicar os diários de F.? Comentou coisas duras que ele escrevia e que ela pretendia colocar notas de rodapé que alertariam: “isso não corresponde à verdade”. Não sei se o fez. Fiquei espantada, mas ainda não soube dizer não. Veio por e-mail a lista com os valores e o arquivo já digitado para eu ter uma noção da quantidade de laudas. As páginas correspondiam ao último ano de vida dele, da qual, em tese, eu não fazia mais parte, mais o trecho de uma novela inacabada. Mas meu nome estava lá... e foi um golpe lê-lo numa única menção bastante rude, assim como soou todo o restante do conteúdo à sombra do acontecido.
Pedi para ela não me envolver mais. Ainda assim cheguei a receber o convite para o lançamento do livro que, para meu espanto, tratava o suicÃdio como epidemia, e os escritos de F. como caso que poderia ser evitado com alguma intervenção. Um prefácio psiquiátrico (área da mãe dele, aliás) alertava para se atentar para este perigo dentro dos lares. Por um tempo me perguntei por que F., decidido a se matar, não teria queimado seus diários? Depois concluà que ele queria que fossem lidos pela mãe, ela precisaria ler aquilo, sem notas de “isso não corresponde à verdade”, como hoje acredito que também quis que aqueles que li quando ainda estávamos juntos fossem lidos por mim, sim, como a verdade para além de qualquer romantismo. Mas não sei dizer se F. gostaria que fossem publicados, tampouco com prefácio diagnosticador. Uma das coisas das quais ele mais fugia, aliás, era de diagnósticos desse tipo. Era cioso. Aqueles cadernos eram seu laboratório de escritor que não chegou a revelar-se para um público? Não vou avaliar este mérito. A experiência que temos com Piglia, Kafka, Marina Tsvetáieva e Juliano Garcia Pessanha [meu companheiro já desde a época do acontecido com F., aliás] é a de estar diante de escritos que dizem de muitos outros eus para além dos deles, não por caráter epidêmico, mas por justamente por sua singularidade. Não se trata de estar ou não estar envolvido no que é dito de forma direta e ainda assim envolver-se no mais fundo.
Por causa da doença, Piglia já não pode escrever sozinho. Alguém que não vemos o rosto no filme (ou pelo menos eu não o guardei) agora é quem digita. Juliano, por outros motivos, também não digita o que escreve à mão. Sempre à mão, acumulando cadernos. Como Piglia, também começou a escrever por causa da prática de diários. Logo que começamos a namorar, me coloquei neste lugar de quem digita suas coisas. Nem sempre é muito fácil, porque sou eu e porque é ele. Com o passar dos anos e maior a intimidade, é ainda mais difÃcil lidar com o que vem do passado alheio quando se mistura ao nosso, porque implicados no presente. Quando hoje saà do cinema, a primeira coisa que fiz foi ligar o celular e buscar as fotos da noite em que Juliano resolveu acender a lareira para queimar algumas daquelas páginas. Agora é engraçado rever as fotos daquele momento que parecia tão solene para mim. Ele, muito alérgico, usava luvas, para se proteger da poeira, para se proteger de mais o quê? Não estamos protegidos do passado, do nosso, nem dos outros. E o que é morto sempre aparece, alguém disse por aÃ.
Em uma das cenas de 327 cadernos, Piglia também queima um de seus diários. Além das cinzas, restaram dúvidas. Queimou o já digitado? Queimou o que, registrado mais uma vez na releitura, prefere ver esquecido?